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quarta-feira, 29 de abril de 2009

Santana do Livramento, Outono/2009


Livramento

Aqui esta Livramento, Cidade perdida e esquecida na fronteira meridional da pátria. E, ali esta Rivera, do outro lado. E aqui e ali estamos nos, vivendo sem ao menos sonhar que existe uma linha imaginaria nos dividindo em pátrias distintas. Neste rincão, único no mundo, quando nos agrada, ate mulheres contrabandeamos. E tanto faz casar no lado de la como no de cá, para nos, e a mesma cousa.

Por essa especial razão e que o jornalista hindu khushwant Sinch, membro da UNESCO, ao referir se a esta fronteira dizia: ‘nunca havia visto coisa igual no mundo, pois todas as fronteiras que conhece estão guarnecidas por baionetas, arames farpados, etc., o que longe esta, portanto de fomentar a amizade que, aqui, e vista’. É no livro de visitantes ilustres do Museu Municipal “Davi Canabarro” escreveu um versinho existente no Palácio de Delhi: ”Se na terra houvesse um céu, este céu seria aqui, aqui, aqui.” E depois de tantos outros, para finalizar, disse Antonio Gamarra, da divisão da imprensa da UNESCO: “La UNESCO lucha por la Riverización y el Livramento del mundo”.

Pois bem, meus patrícios, embora Livramento receba tantos elogios, tirando o Presidente Vargas, qual foi o outro que teve, sequer, a bondade de olhar para esta parte do Brasil? Quem se lembrou de Livramento, deste rincão nascido de um acampamento militar, transformado em acampamento por muitos anos e que, por mais de duzentos anos, emprestou seu solo para campos de batalha e sentiu o trepidar dos cascos de cavalos nas cargas, cargas, e mais cargas dos cavalarianos?...

Quando o Presidente Vargas construiu o Parque Internacional, ajudou a construir e cimentar a harmonia lenta, mas firme, que os velhos italianos e depois, espanhóis, construíram, dando, ao mundo, este maravilhoso exemplo de fraternidade e compreensão.

Lembro a juventude do meu tempo: dos batalhões de mais de 150 guris, dispostos e atrevidos: dos nossos incansáveis “jogo de talho”, onde passávamos horas tirando um “tic” e terminávamos às vezes batendo de verdade: das latas colocadas a mais de vinte metros para treinar a pontaria com pedradas: enfim, daqueles momentos que alvorotamos as duas cidades com as nossas formidáveis batalhas. E cerro do Marco como um dedo apontado para o céu, testemunho silencioso, ouvia, com sua impassibilidade de pedra, a gritaria da gurizada em luta e o estridente apito dos “milicos” de Rivera. Que bom tempo aquele!...

Quando em 1915, mais ou menos, a policia de Rivera começou a acabar com os batalhões do lado de la, as brigas, para não perder o habito, continuaram entre os diversos batalhões do lado de cá. E brigávamos, como sempre, a pedrada, espadas de pau e lanças: as batalhas continuaram renhidas ate o advento do cinema Brasil-Uruguai hoje Cinema Colombo. Só mesmo o cinema poderia acabar com aquelas noitadas de “entrevero e polvadera”: aquelas noites em que ate o cabo “Muchila”, com sua patrulha, entrava no “porrete” se viesse intrometer se com as nossas batalhas: aquelas noites em que o mulherio gritava nas portas e janelas, desesperadamente: “Policia socorro. Esta gurizada se mata. Socorro. Virgem Maria Nossa Senhora, que barbaridade!... E a gente no meio da poeira, “entreverado no mais”, dentes cerrados para não chorar, pois, naquele tempo era feio chorar, apanhando e dando...

Livramento, município que nasceu lutando e lutando viveu por muitos anos, nunca teve tempo para pensar no seu próprio desenvolvimento e progresso.

Quiçá, antes da fundação da Colonia do Sacramento, já a área de Sant’Ana e adjacências era campo de luta dos charruas e minuanos, depois espanhóis, depois portugueses e depois nos.
Quando terminaram as campanhas com os espanhóis, surgiram os partidos políticos, e Maragatos e Pica-Paus se entreveraram novamente: depois eram os mandões de determinadas zonas, obedecidos e temidos, e, por determinados rincões o contrabando organizado com esquadrões de atirador que tiroteavam por rumos diferentes enquanto o contrabando passava noutro lugar.

Assim nasceu e cresceu Livramento, seu solo generoso foi regado e fertilizado com o sangue de muitos de seus filhos. Hoje, gozando de merecida paz, olhamos para esse passado de lutas, de tantas lutas pela Pátria e pelo direito de viver, perguntamos meio acanhados, aos governos que nos deram armas para lutar e morrer: ”Que foi feito por nos que tivemos tanto auxílio para lutar, por que não o temos tido para progredir?!”

Olhamos contritos e pensativos, para o heróico acampamento de S. Diogo, onde, Joaquim Xavier Curado, o primeiro e grande general brasileiro, ao fazê-lo, em homenagem a D. Diogo de Sousa, em 21 de novembro de 1810, deu o primeiro passo para nossa fundação.

E, que, como nova Rio Pardo, cimentou e guardou, para o Brasil, esta rica região meridional. E, não esqueçamos, todas as cidades desta região nasceram por ordem desse acampamento.

Lembramos, também, a nossa irmã em lutas, Nossa Senhora da Conceição da Aparecida – hoje Alegrete – nascida à margem direita do rio Inhandui e destruída em 1816 pelas tropas de Andresito Artigas, e, também, o heróico S. Diogo arrasado a “ferro e fogo” por 2.500 homens de Artigas, em 14 de dezembro de 1819. O conde de Figueira, enfurecido por este ato de vandalismo, reuniu tropas, reuniu-se ao general Abreu e a Bento Corrêa da Câmara e, passando por S. Diogo, foi destruir, em 22 de janeiro de 1820, as hostes de Artigas acampadas em Tacuarembó Chico.

Em 30 de junho de1823, alguns moradores de S. Diogo, com Antonio Jose de Menezes à frente e mais alguns do distrito de Santa Maria, obtiveram permissão para erigirem uma Capela sob a invocação de Nossa Senhora do Livramento. Em 22 de março de 1821, conforme atas guardadas na nossa Igreja Matriz, Antonio Vieira da Soledade, confirmava: “Aos esta minha Provizam virem saúde e paz em o Sr. faço saber que atendendo ao que por sua petição retro me enviaram..................Antonio Jorge de Menezes, e mais devotos da Capella de Nossa Senhora do Livramento. Erecta no Distrito de S. Diogo. Fronteira do Rio Pardo.
“Hei por bem, de lhe conceder à graça de elevar a dita Capella de Nossa Senhora do Livramento a Curata”.

Como se compreende, Livramento era em S. Diogo uma simples capela e, como já não era mais possível aos fazendeiros transferirem a S. Diogo para outro local, transferiram-na porque os campos eram de primeira.

Infelizmente, ou felizmente, aquela povoação, após 1819, nunca mais voltou a ser o que era antes, pois alguns moradores chegaram no passo do Rosário, outros se transferiram para Alegrete e os que para lá voltaram, acreditamos, foram os veteranos soldados portugueses, instalados por ordem de S. Diogo de Sousa. E aquela que, em 20 de maio de 1812, era chamada, pomposamente, pelo comandante de Rio Pardo, major Sebastião José de Oliveira. “Cidade de São Diogo” nunca mais passou de um amontoado de casas velhas. Em 1848, quando Caxias atacou Davi Canabarro deste lado ainda existiam alguns moradores naquele glorioso e esquecido S. Diogo.

Vendo isto, os fazendeiros, que ate hoje têm horror destes povoados próximos a seus campos, resolveram tratar de sua mudança. Primeiro escolheram a várzea de Sant’Ana hoje, Cerro Chato e para lá conseguiram levar alguns, depois escolheram, de acordo com uma cláusula na carta sesmaria de Luciano Pinheiros”... outro sim descobrindo neles rio caudaloso que necessite de barca para ser atravessado deixara de uma das margens um quartel de légua em quadro destinado acomodidade geral: sendo preciso fundará Vila. Povoação ou Freguesia no Distrito, dela largara meia légua em quadro para fração publica tiver depenção alguma a seu beneficio bem como tudo aquilo em que se acharem vieiros ou minas de qualquer metal que for? Com este tão precioso achado, os fazendeiros de S. Diogo, nada mais tinham de fazer senão mudar o povoado: e foi o que fizeram, mudando a Capela de Nossa Senhora do Livramento.

De acordo com um mapa manuscrito levantado por José Pedro César, debaixo da direção do Visconde São Leopoldo, já existia nestas imediações, chamada, então, Itaquatiá, uma Capela de Sant’Ana. Daí, acreditamos, veio a fusão de nomes de Sant’Ana com o de Nossa Senhora do Livramento, fazendo a nossa Sant’Ana do Livramento.

A lenda de que D. Ana Ilha de Vargas tenha doado uma imagem com a condição de que a Villa fosse mudada de N. S. do Livramento para Sant’Ana do Livramento, não pode ser a expressão da verdade, por muitos motivos: principalmente por uma senhora bastante culta para aquela época. Por informações colhidas e dadas como exatas, sabemos que, o que ela tinha feito, foi uma promessa de doar, à nascente freguesia, uma bonita e grande imagem de Sant’Ana do livramento, e que o fez em cumprimento do prometido.

E aqui, patrícios amigos, fica o nosso convite para que visitem S. Diogo. N. S. do Livramento. Sant’Ana do Livramento e, hoje, Livramento somente. Garanto: não brigamos mais.

O. M. Bolívar, Enciclopédia Ilustração Brasileira, junho de 1956.
Material cedido gentilmente por funcionárias do Museu Municipal “Davi Canabarro”

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